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Um papo com Criolo sobre os seus 50 anos, novidades e Grajaú: "Tem criança com fome"
Radio 19/09/2025 11:10 Fonte: VEJA SÃO PAULO Por: VEJA SÃO PAULO Relevância: 40

Um papo com Criolo sobre os seus 50 anos, novidades e Grajaú: "Tem criança com fome"

O rapper no Centro Cultural Grajaú: ao fundo, grafite de Vatto e Caique Cruz (Masao Goto Filho/Veja SP)

Era uma manhã nublada no Grajaú. Em andanças pelo seu bairro, com a leveza de quem está no seu lugar no mundo, Criolo deixou transparecer as emoções que aquelas ruas traziam. Nos arredores da sede do Pagode da 27, roda de samba que é fenômeno da região, ou no Centro Cultural Grajaú, o artista tirou alguns segundos ou minutos de atenção para atender aqueles que o abordavam, sempre mirando olho no olho.

Questionado se o bairro mudou, a resposta foi sucinta: "É sofrido, né?". Suas palavras são precisas, de quem viu e viveu bastante. Afinal, por mais que não pareça, o rapper, cantor e compositor completou meio século de vida no último dia 5. "Chegar nessa idade é diferente. Sobretudo de onde a gente vem, sem perspectiva de longevidade. O sentimento é gratidão de estar vivo e ainda cantando."

Felizmente, Criolo -- ou Kleber Cavalcante Gomes, seu nome de batismo -- está longe de parar. Ele prepara um disco duplo de samba, metade trazendo o mesmo repertório revisitado pelo músico português Dino D'Santiago. Nesse processo de gravação, nasceu outro projeto, que sairá antes, ainda neste ano: um disco em trio, ao lado de Dino e do pianista pernambucano Amaro Freitas.

A fase inspirada também o aproximou das rimas e batidas. Entre maio e junho, durante turnê em Portugal, conheceu o jovem rapper lusitano Pallex, com quem colaborou em estúdio na produção de um álbum do novo parceiro. E ainda tem um disco inédito de rap, todo seu, nascendo. "Nesse processo com Amaro, Dino e Pallex, voltei no tempo. Fiz alguns raps -- tem outro álbum vindo, meu. Bem anos 90, raízes."

"Chegar nessa idade é diferente. Sobretudo de onde a gente vem, sem perspectiva de longevidade. Gratidão de estar vivo e ainda cantando"

Será um novo capítulo, após o desfecho da trilogia formada por Nó na Orelha (2011), Convoque Seu Buda (2014) e Sobre Viver (2022). "Vai ser um disco bem 'Criolo Doido' (o nome artístico que usou até 2011)", antecipa.

O hip-hop não é sempre uma certeza para o artista paulistano. "Eu não imaginei que fosse seguir fazendo rap, porque nunca forcei isso. Ele tem que nascer, é da alma", pensa. Antes de lançar o disco que mudaria a sua vida, o aclamado Nó na Orelha, a ideia era abandonar as rimas. "Desistir de tudo, na verdade. A autoestima estava no chão."

Na feitura daquele álbum, produzido por Marcelo Cabral e Daniel Ganjaman e viabilizado pela Matilha Cultural, liderada por Ricardo Costa, todos ao redor enxergavam os próximos passos de Criolo, menos ele. "Eles acreditavam em uma sobrevida, mas, para mim, era uma despedida. Estava muito machucado. Tentei, dei minha contribuição, mas era hora de sair", pensava. É que, antes de se tornar um dos nomes mais respeitados da nova música brasileira, ele vinha de uma longa trilha no underground, desde 1989. Ainda nos anos 90, integrou o grupo Pacto Latino. Em 2006, criou, com DJ DanDan, parceiro fiel, a Rinha dos MC's, batalha de rimas pioneira. Seu primeiro disco solo, Ainda Há Tempo (2006), produzido a partir de 2000, não fez muito barulho à época.

As primeiras criações vieram aos 11 anos. "Não sabia que palavras rimavam e vi um rapaz fazendo um verso. Aquilo me arrebatou. Na mesma semana, escutei uma música no rádio -- era rap e parecia descrever a minha vida, a minha casa, a minha rua. Comecei e não parei mais." Acompanhando o pai no futebol de várzea, se apaixonou pelo samba. Música jamaicana e outros sons internacionais vieram pelas equipes de baile no bairro. As primeiras referências no rap foram nomes como Thaíde & DJ Hum e Os Magrellos. Depois, as coletâneas Cultura de Rua e, claro, os Racionais MC's -- cujo próximo disco terá participação de Criolo.

Durante doze anos, foi arte-educador, herdando o ativismo pela educação de sua mãe, Maria Vilani, escritora e professora. Os dois preparam um livro inédito, previsto para 2026, que irá documentar conversas cotidianas, sem pauta. "São aprendizados que nos ajudam na engenhosidade invisível do que é viver a vida. Você pode achar que o ouro está em um lugar com muitos holofotes, mas às vezes está dentro de casa. Um abraço da mãe, um sorriso do pai -- é sobre preocupação, afeto, carinho, que nem todos têm", detalha.

Na noite do último sábado (13), Criolo se apresentou no festival The Town. Embaixador do estreante palco Quebrada, a voz do rapper também estava em uma das músicas-tema do evento, reproduzida todos os dias pelas caixas de som. Sua presença no Autódromo de Interlagos carrega um significado especial. "Entre 2002 e 2004, para pagar o estúdio do disco Ainda Há Tempo, fiz todo tipo de bico que você pode imaginar. Trabalhei muito no Autódromo, doze horas em pé entregando panfletos, para ganhar 32 reais", relembra.

"Não é que as pessoas não se amam. É como São Paulo trata quem vive nesta cidade. Tem criança com fome e a culpa não é da criança"

O novo show faz parte da turnê Criolo 50, que tem rodado o Brasil desde junho e volta à capital paulista no dia 23 de janeiro, no Espaço Unimed. É uma nova fase também nos bastidores: sua carreira está sob nova gestão, uma parceria entre as empresas Bonus Track e Nascimento Música.

O ouvido segue atento à cena musical. "Esses dias eu vi Tasha & Tracie na capa da CAPRICHO. Quase chorei", conta, ainda citando Yunk Vino e a dupla Kyan e Mu540 -- que faz um som mais eletrônico, ligado ao funk -- como novos artistas que admira. "Há uns oito anos venho pensando em fazer house, tenho vários beats guardados. Uma hora vai sair", revela.

Para Criolo, a arte é uma expressão visceral. "Eu não escolho fazer samba ou rap. Isso vem e passa por mim, não é uma encomenda. Algo que precisa ir embora para nunca mais, ou ficar aqui. Cada canção é parte de mim", define. As suas rimas que espelham as dores do Brasil partem sempre, em algum nível, da sua própria história.

"As pessoas estão com fome, as crianças não têm onde estudar e vão virar adolescentes sem horizonte. Essa métrica é quebrada com muito amor, dos pais, dos amigos. Uma rua que talvez não seja bonita para cartão-postal pode ter pessoas incríveis -- a quebrada sempre dá algum tipo de ensinamento. Mas não dá para romantizar a fome", reflete.

"Você pode achar que o ouro está em um lugar com muitos holofotes, mas às vezes está dentro de casa"

Essa dança entre a doçura e a dureza da vida é o cerne da sua canção mais emblemática, feita em uma tacada só, ao sair de um trem, em 2010: Não Existe Amor em SP. "Não é que as pessoas não se amam. É como São Paulo trata quem vive nesta cidade. Tem criança com fome, e a culpa não é da criança. Vamos resumir assim", afirma, com seu talento singular de, em poucas palavras, com ou sem melodia, expressar sonhos e pesadelos coletivos.

Questionado sobre a contribuição da sua arte hoje, ele encerra: "Talvez eu seja relevante para a minha mãe, porque sou filho. O resto é dividir o coexistir com o outro". ■

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