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Sakamoto: Anistia já! Para quem furta por fome, não para quem espanca democracia - Combate Racismo Ambiental
Geral 14/09/2025 16:01 Fonte: racismoambiental.net.br Por: racismoambiental.net.br Relevância: 15

Sakamoto: Anistia já! Para quem furta por fome, não para quem espanca democracia - Combate Racismo Ambiental

A maioria dos brasileiros (54%) é contra anistiar Jair Bolsonaro para livrá-lo da cadeia, enquanto 39% são a favor disso, segundo pesquisa Datafolha. Ou seja, a punição ao ex-presidente para que cumpra a condenação por tentativa de golpe de Estado ultrapassou a polarização da sociedade entre direita e esquerda, com uma parcela dos não-alinhados defendendo Justiça.

A pesquisa também aponta que 61% são contra qualquer tipo de perdão aos condenados pelos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, enquanto 33% querem anistia.

Desde quinta (11), quando o STF fixou 27 anos e três meses a Bolsonaro, os seguidores do ex-presidente, que representam o grosso desse terço das pesquisas, descobriram a ideia de dosimetria de pena. E vem questionando publicamente o tamanho da punição para algo que consideram insignificante.

Mas quem já furtou comida ou bens de valores, aí sim, insignificantes tem outra impressão: que a decisão sobre o tamanho da pena no Brasil e a forma do seu cumprimento dependem sempre da cor da pele, da classe social e de ter poder.

Decisões judiciais precisam ser cumpridas sempre, mas podem ser debatidas e questionadas. Considero, portanto, a discussão sobre tamanho de penas válida. Mas para que ela não seja hipócrita, precisamos debater o que acontece com outros tipos de crimes para os quais parte dos autointitulados homens e mulheres de bem não dá a mínima.

Pois há uma parcela que acha injusto punir alguém por tentativa de golpe de Estado com cadeia, mas aceita a pena de morte informal a quem furta algo de baixo valor.

A diferença de tratamento não surpreende em uma sociedade em que a ideia de "bandido bom é bandido morto" tem aderência. Com exceção de quem sonega imposto. Aí, não, pois esse roubo é visto como heroísmo.

São muitos os casos de pessoas condenadas e presas por roubar carne. Isso quando não rola pena capital. Dois homens foram torturados por cinco seguranças do supermercado UniSuper, em Canoas (RS), diante do gerente e do subgerente da loja, após tentarem furtar duas peças de carne. Vítima das piores agressões, um homem negro teve fraturas no rosto e na cabeça. E um tio e um sobrinho, que furtaram carne de uma unidade do Atakadão Atakarejo, em Salvador, foram encontrados mortos com sinais de tortura e marcas de tiro.

Homens e mulheres de bem se refestelaram com as punições milicianas sofridas pelos envolvidos nesses casos nas redes. Pelo perfil dos envolvidos, alguns deles são os mesmos que hoje choram a decisão do STF.

Prender alguém por conta de dois quilos de picanha não vai ajudar em sua reinserção social ou mesmo evitar novos furtos. Mesmo a abertura de um processo é, a meu ver, acintoso, pois força o Estado a gastar tempo, recursos humanos e dinheiro em algo cuja solução não passa pela cadeia. Imagine se ao invés de um pedido de pena privativa de liberdade, desde o começo, fossem propostas horas de prestação de serviços à comunidade ou a obrigatoriedade de frequência em algum curso.

Ninguém está defendendo quem erra ou comete crimes. O que está em jogo aqui é que tipo de Estado e de sociedade que estamos nos tornando ao acreditarmos que punições severas para coisas ridículas (mesmo reincidentes) têm função pedagógica enquanto defende-se impunidade para ataques à democracia. Desde quando a República passou a valer mais do que acém com osso?

Sueli foi condenada pelo roubo de dois pacotes de bolacha e um queijo minas em uma loja. Valdete foi condenada a dois anos de prisão em regime fechado por ter roubado caixas de chiclete. Maria Aparecida foi mandada para a cadeia por ter furtado um xampu e um condicionador em um supermercado e perdeu um olho enquanto estava presa.

O princípio da insignificância pode ser aplicado quando o caso não representa riscos à sociedade e não tenha causado lesão ou ofensa grave. Por exemplo, carne, bolacha, queijo minas, chiclete, xampu e condicionador. Tipo de coisa que não deveria ser punido com cadeia. Seja pela inutilidade da punição, pelo seu custo ou mesmo pelo déficit de humanidade que isso representa.

O Supremo Tribunal Federal vem desconsiderando muitos furtos de pequeno valor como crime. Essa conduta não gera uma obrigação a todos os juízes e desembargadores de instâncias inferiores, mas sinaliza o que pode acontecer com o caso se ele subir ao STF. E é uma tentativa da corte de mostrar que não são apenas os ricos e que têm acesso a advogados que conseguem decisões favoráveis no tribunal.

Contudo, a mesma Suprema Corte também já deu decisões desfavoráveis a quem cometeu furtos insignificantes. Por exemplo, o ministro Luiz Fux que nos presenteou com um gigantesco voto absolvendo Jair Bolsonaro manteve a prisão de um homem condenado a um ano e nove meses de reclusão pelo furto de um pacote de 18 latas de cerveja avaliado em R$ 35 há dois anos.

A Defensoria Pública da União, alegando o princípio da insignificância, havia pedido um habeas corpus para liberá-lo. O máximo que Fux fez foi transferi-lo ao regime semiaberto.

Em, em maio, o ministro negou habeas corpus para uma pessoa que furtou uma peça de carne de R$ 90. O alimento sequer chegou a ser levado do local de onde foi furtado, em Minas Gerais, quatro anos atrás, segundo a Defensoria.

Mas não só ele. Dois homens furtaram um macaco velho de carro, dois galões de plástico vazios e menos de um litro de óleo diesel e foram condenados, um a 10 meses e 20 dias, outro a 2 anos e 26 dias de prisão. A 1ª Turma do STF, a mesma que condenou os líderes da conspiração golpista, rejeitou, em 2023, a aplicação do princípio da insignificância aos dois em itens avaliados em R$ 100 e manteve as condenações.

Na época, eu reclamei aqui neste espaço, mas não há registro de protestos de que a extrema direita enrolou-se em uma bandeira dos Estados Unidos contra a decisão.

Normalmente, a justificativa dada é que o indivíduo envolvido não era réu primário. O que, convenhamos, na maioria dos casos, isso é uma bobagem sem tamanho.

As redes sociais extremistas foram bem transparentes ao afirmarem que Gabriel mereceu ter seu CPF cancelado porque era ladrão, o que negou a ele a empatia de muita gente. Não há pena de morte no Brasil e ninguém estava em risco na unidade do Oxxo assaltada, mesmo assim o policial militar Vinicius de Lima Britto achou que que podia abraçar a função de promotor, juiz e carrasco e dar 11 tiros nas costas do rapaz em novembro passado.

Cheguei a encontrar mensagens que felicitavam o PM por um "ladrãozinho negro" a menos em uma rede social que mandou a moderação do ódio às favas.

Diante de uma polícia com baixo índice de resolução de crimes, casos como a execução de Gabriel são vistos como uma forma de vingança. Miliciana, violenta e injusta, claro.

Claro que, novamente, escolhe-se o bandido com quem sentir solidariedade. Pois, fazer parte da invasão e depredação das sedes dos Três Poderes para ajudar em um plano de golpe de Estado e, portanto, espancar a democracia, é muito mais grave.

Mas por aqui quem tenta golpe de Estado, surrupia joias dadas ao Brasil e é leniente à morte de 700 mil durante a pandemia é premiados com gritos de "mito" e promessas de amor eterno por muitas das mesmas pessoas que sapatearam no corpo de Gabriel.

Anistia já. Mas para quem furta bife, não para quem rouba a democracia.

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Legenda da Folha de São Paulo para a foto, na matéria "Este é Luiz Fux", publicada em 16/09/2019:

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